domingo, 24 de julho de 2011

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“O homem não deveria pensar-se como revolucionário apenas no plano social, mas acreditar e, sobretudo, sê-lo no plano físico, fisiológico, anatômico, funcional, circulatório, respiratório, dinâmico, atômico e elétrico”

(Antonin Artaud)

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011





Transar bem todas as ondas

a Papai do Céu pertence,

fazer as luas redondas

ou me nascer paranaense.

A nós, gente, só foi dada

essa maldita capacidade,

transformar amor em nada




PAULO LEMINSKI

(Em Distraídos Venceremos, Brasiliense)

Pont du Carrousel





O homem cego parado na ponte,
marco cinza de anônimo país,
talvez seja o que é sempre igual a si,
o eixo que ao horóscopo se absconde,
centro fixo do céu que em torno gira.
Pois tudo em volta erra e corre e brilha.

Ele é o inamovível integral
postado entre os caminhos mais erráticos;
sombria entrada a um mundo subterrâneo
em meio a um povo superficial.


Rainer Maria Rilke

Anoitecer em outubro




A noite cai, chove manso lá fora
meu gato dorme
enrodilhado
na cadeira

Num dia qualquer
não existirá mais
nenhum de nós dois
para ouvir
nesta sala
a chuva que eventualmente caia
sobre as calçadas da rua Duvivier


Ferreira Gullar

Nuvens (I)




Não haverá uma só coisa que não seja
uma nuvem. São nuvens as catedrais
de vasta pedra e bíblicos cristais
que o tempo aplanará. São nuvens a Odisséia
que muda como o mar. Algo há distinto
cada vez que a abrimos. O reflexo
de tua cara já é outro no espelho
e o dia é um duvidoso labirinto.
Somos os que se vão. A numerosa
nuvem que se desfaz no poente
é nossa imagem. Incessantemente
a rosa se converte noutra rosa.
És nuvem, és mar, és olvido.
És também aquilo que perdeste


Jorge Luis Borges

O rio





Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas nos céus, refleti-las.
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranqüilas.

Manuel Bandeira

O crítico como artista




Do diálogo de Oscar Wilde O crítico como artista (The critic as artist):

Ernest: Mas qual é a diferença entre a literatura e o jornalismo?
Gilbert: O jornalismo é ilegível, e a literatura niguém lê. É só.


Ernest: But what is the difference between literature and journalism?
Gilbert: Oh! journalism is unreadable, and literature is not read. That is all.

Casida da rosa




A rosa
não buscava a aurora:
quase eterna em seu ramo,
buscava outra coisa

A rosa
não buscava nem ciência nem sombra:
confim de carne e sonho,
buscava outra coisa.

A rosa
não buscava a rosa.
Imóvel pelo céu
buscava outra coisa.

Federico Garcia Lorca

Margem





qual

mar

gem

vir

gem

de á

gua

fico

dist

ant

e e

pert

o o

bast

ante

do m

eu de

serto


Arnaldo Antunes

Pelos campos...





Pelos céus as nuvens passam
Pelos campos passeia o vento
Por onde vagabundeia
Perdido de ti, mãe, teu rebento.

Pelas ruas rolam as folhas
Pelas árvores passarinhos –
Num lugar pelas montanhas
Há de ficar meu lar longínquo.


Hermann Hesse

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

JARDIM À FRANCESA




eu com minha idade sentado num banco de praça
meu coração era do tamanho do mundo
feito do seu elemento de água rumor e ornamento
duas alamedas duas fontes se escorrendo
meu coração era do tamanho deste mundo
ora assim igual a si mesmo ora se
desconhecendo
mas meu coração é menos perfeito do que esta praça
às vezes se lembra e dificilmente
da hora exata do retorno do tempo
meu coração às vezes tropeça projeta uma perna
sobre a outra
se interrompe mudo parece
que pensa

Marcos Siscar
(Não se Diz, 1999)

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Aprendizagem




Tão propenso anda o homem a se dedicar ao que há de mais vulgar, com tanta facilidade se lhe embotam o espirito e os sentidos para as impressões do belo e do perfeito, que por todos os meios deveríamos conservar em todos nós essa faculdade de sentir.
Pois não há quem possa passar completamente sem um prazer como esse, e só a falta de costume de desfrutar algo de bom é a causa de muitos homens encontrarem prazer no frívolo e no insulto, contanto que seja novo.
Deveríamos diariamente ouvir ao menos uma pequena canção, ler um belo poema, admirar um quadro magnífico e, se possível, pronunciar algumas palavras sensatas.


Goethe em "Os anos de aprendizado de Wilhelm Meiter" citado por Ricardo Antunes em "O caracol e sua concha"

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011




Todos sabemos que cada dia que nasce é o primeiro para uns e será o último para outros e que, para a maioria, é só um dia mais.

Saramago

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Amor




O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

João Cabral de Melo Neto



"Algumas pessoas nunca enlouquecem. Que vida de merda elas devem ter."

Charles Bukowski

Humano




"Tudo posso ser, minha alma errante e meu espírito livre me dizem somente uma certeza: Sou humano, demasiadamente humano."

Friedrich Nietzsche

Elogio da Dialética





A injustiça passeia pelas ruas com passos seguros.
Os dominadores se estabelecem por dez mil anos.
Só a força os garante.
Tudo ficará como está.
Nenhuma voz se levanta além da voz dos dominadores.
No mercado da exploração se diz em voz alta:
Agora acaba de começar:
E entre os oprimidos muitos dizem:
Não se realizará jamais o que queremos!
O que ainda vive não diga: jamais!
O seguro não é seguro. Como está não ficará.
Quando os dominadores falarem
falarão também os dominados.
Quem se atreve a dizer: jamais?
De quem depende a continuação desse domínio?
De quem depende a sua destruição?
Igualmente de nós.
Os caídos que se levantem!
Os que estão perdidos que lutem!
Quem reconhece a situação como pode calar-se?
Os vencidos de agora serão os vencedores de amanhã.
E o "hoje" nascerá do "jamais".

Bertolt Brecht



"Dos medos nascem as coragens; e das dúvidas as certezas. Os sonhos anunciam outra realidade possivel, e os delirios, outra razão. Somos, enfim, o que fazemos para transformar o que somos. A identidade não é uma peça de museu, quietinha na vitrine, mas a sempre assombrosa síntese das contradições nossas de cada dia. Nesta fé, fugitiva, eu creio. Para mim, é a única fé digna de confiança, porque é parecida com o bicho humano, fodido mais sagrado, e à louca aventura de viver no mundo. "

Eduardo Galeano



Não é necessário sair de casa. Permaneça em sua mesa e ouça. Não apenas ouça, mas espere. Não apenas espere, mas fique sozinho em silêncio. Então o mundo se apresentará desmascarado. Em êxtase, se dobrará sobre os seus pés.

Franz Kafka



Nunca se pode fazer lista das melhores coisas da vida. A razão é simples: se elas chegam de repente ... falta preparo; se as prevemos... fica sendo cópia. Eu acho que todas as coisas acontecem como se estivessem preparadas antes. A sorte é grande lei da vida e a sorte deve ter suas leis. O mundo é algo plástico. A fé criadora. Não é fé acreditar-se num sistema. Só vemos pedacinhos, fragmentos de uma coisa sempre maior. O momento feliz, já reparou?, não é o que ocorre naquele instante. Está sempre associado a outros lugares e outros tempos. É violino querendo ser orquestra. Só as coisas boas são completas.

Guimaraes Rosa

Aqui estão...




"Aqui estão os loucos. Os desajustados. Os rebeldes. Os criadores de
caso. Os pinos redondos nos buracos quadrados. Aqueles que vêem as
coisas de forma diferente. Eles não curtem regras. E não respeitam o
status Quo. Você pode citá-los, discordar deles, glorificá-los ou
caluniá-los. Mas a única coisa que você não pode fazer é ignorá-los.
Porque eles mudam as coisas. Empurram a raça humana para a frente. E,
enquanto alguns os vêem como loucos, nós os vemos como geniais. Porque
as pessoas loucas o bastante para acreditar que podem mudar o mundo,
são as que o mudam."

Jack Kerouac

Ausência




Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

Carlos Drummond de Andrade

RECUSO-ME A ENCONTRAR ANTIGOS AMIGOS E QUEIMADURAS DE SEGUNDO GRAU...




RECUSO-ME A ENCONTRAR ANTIGOS AMIGOS E QUEIMADURAS DE SEGUNDO GRAU.
NÃO QUERO SUBMETER-ME A COMPARAÇÕES NEM CONVENCÊ-LOS DE QUE ESTOU DIFERENTE... SENDO IGUAL.
MANIAS SERÃO VISTAS COMO DEFEITOS. DEPOIS, COMO TRAÇOS DE PERSONALIDADE, ATÉ QUE SEJAM TRANSFORMADAS EM VIRTUDES.
TER SE ACOSTUMADO UM COM O OUTRO NÃO SIGNIFICA QUE AVANÇAMOS.
SEREMOS SEMPRE RESIDÊNCIAS GEMINADAS SE CORRESPONDENDO PELOS MUROS.

Carpinejar



No mistério do sem-fim
equilibra-se um planeta.
E no planeta um jardim
e no jardim um canteiro
no canteiro uma violeta
e sobre ela o dia inteiro
entre o planeta e o sem-fim
a asa de uma borboleta.

Cecília Meireles

Comunicado




Na frente ocidental nada de novo.
O povo
Continua a resistir.
Sem ninguém que lhe valha,
Geme e trabalha
Até cair.

Miguel Torga



"... O estudo da gramática não faz poetas. O estudo da harmonia não faz compositores. O estudo da psicologia não faz pessoas equilibradas. O estudo das "ciências da educação" não faz educadores. Educadores não podem ser produzidos. Educadores nascem. O que se pode fazer é ajudá-los a nascer. Para isso eu falo e escrevo: para que eles tenham coragem de nascer..."

Rubem Alves

Porto de Janeiro




Homens de janeiro cultuam a duvida
Fétida
Sedenta
Exalando aos poros memorias inventadas
De estrelas

A lua chorava lilás.
Minha alma escrevia meia torta cheiros de agua
Enquanto meu olho estarrecido seguia a correnteza dos prédios

Homens de janeiro padeciam o deslumbrar das mulheres na praça
Faceiras
Luxuriosas
soltando pelas ruas raios de vênus

Uma flor me beijou nas nuvens
E por um instante
Uma fração aguda calada
Havia ganho o poder de
Domesticar as entrelinhas

Janeiro germinava o descanso incompleto
A expectativa ilusória
O vazio total.

Eu
Exausto
Continha a ferocidade de um muro alto
Cerrado pelos sonhos matutinos e solitários
Lembrando de minha terra.
Do meu céu.
E de minha verdadeira tempestade.

Thor Veras

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Acordar




"Tanta gente vive em circunstâncias infelizes e, contudo, não toma a
iniciativa de mudar sua situação porque está condicionada a uma vida de
segurança, conformismo e conservadorismo, tudo isso que parece dar paz de
espírito, mas na realidade nada é mais maléfico para um espírito aventureiro
que um futuro seguro."

Catarina Disangelista

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Liberdade




“Que nada nos limite, que nada nos defina, que nada nos sujeite. Que a liberdade seja nossa própria substância, já que viver é ser livre. Porque alguém disse e eu concordo que o tempo cura, que a mágoa passa, que decepção não mata, e que a vida sempre, sempre continua."

Simone de Beauvoir.

A bebida




Faz com que você saia da rotina do dia-a-dia, impede que tudo seja igual.
Arranca você pra fora do seu corpo e de sua mente e joga contra a parede.
Eu tenho a impressão de que beber é uma forma de suicídio
onde você é permitido voltar à vida e começar tudo de novo no dia seguinte.
É como se matar e renascer.
Acho que eu já vivi cerca de dez ou quinze mil vidas.

Charles Bukowski

Sonhos




Se sonhar um pouco é perigoso, a solução não é sonhar menos, é sonhar mais.

Marcel Proust

De uma vez por todas




Mais uma vez
última vez
agora é pra valer
eu já tentei
acreditei
fiz o que pude fazer
vem me dizer
se você vem outra vez
ou não
última vez
quem sabe amanhã
não mais seremos ninguém
de uma vez
perdidos pra sempre de nós
não há nada a temer
é só querer outra vez

Cacaso

A Fábrica do Poema




sonho o poema de arquitetura ideal
cuja própria nata de cimento encaixa palavra por palavra,
tornei-me perito em extrair faíscas das britas
e leite das pedras.
acordo.
e o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo.
acordo.
o prédio, pedra e cal, esvoaça
como um leve papel solto à mercê do vento
e evola-se, cinza de um corpo esvaído
de qualquer sentido.
acordo,
e o poema-miragem se desfaz
desconstruído como se nunca houvera sido.
acordo!
os olhos chumbados
pelo mingau das almas e os ouvidos moucos,
assim é que saio dos sucessivos sonos:
vão-se os anéis de fumo de ópio
e ficam-me os dedos estarrecidos.
sinédoques, catácreses,
metonímias, aliterações, metáforas, oxímoros
sumidos no sorvedouro.
não deve adiantar grande coisa
permanecer à espreita no topo fantasma
da torre de vigia.
nem a simulação de se afundar no sono.
nem dormir deveras.
pois a questão chave é:

sob que máscara retornará o recalcado?

(mas eu figuro meu vulto
caminhando até a escrivaninha
e abrindo o caderno de rascunho
onde já se encontra escrito
que a palavra “recalcado” é uma expressão
por demais definida, de sintomatologia cerrada:
assim numa operação de supressão mágica
vou rasurá-la daqui do poema.)

pois a questão chave é:
sob que máscara retornará?

Wally Salomão

Soneto




Neste mundo é mais rico, o que mais rapa:
Quem mais limpo se faz, tem mais carepa:
Com sua língua ao nobre o vil decepa:
O Velhaco maior sempre tem capa.

Mostra o patife da nobreza o mapa:
Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa;
Quem menos falar pode, mais increpa:
Quem dinheiro tiver, pode ser Papa.

A flor baixa se inculca por Tulipa;
Bengala hoje na mão, ontem garlopa:
Mais isento se mostra, o que mais chupa.

Para a tropa do trapo vazio a tripa,
E mais não digo, porque a Musa topa
Em apa, epa, ipa, opa, upa.

Gregório de Matos

Cogito




eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranqüilamente
todas as horas do fim.

Torquato Neto

Chega um momento...




Chega um momento
em que somos aves na noite,
pura plumagem, dormindo de pé,
com a cabeça encolhida.
O que tanto zelamos
na fileira dos dias,
o que tanto brigamos
para guardar, de repente
não presta mais: jornais, retratos,
poemas, posteridade.
Minha bagagem
é a roupa do corpo.

Carpinejar

POEMA PARA SER TRANSFIGURADO




quem somos
o que queremos
logo logo saberemos

por enquanto
sabemos
que um gesto
uma palavra
podem transformar o mundo

qual deles
qual delas
saberemos já já

essa a missão do artista:
experimentar

por isso somos preciso
por dar nossas vidas
pelo que — ainda não — é
pelo que — quem sabe — será

o que somos
o que queremos
saberemos juntos
já já

CHACAL

Gaiolas




“Somos assim. Sonhamos o vôo, mas tememos as alturas. Para voar é preciso amar o vazio. Porque o vôo só acontece se houver o vazio. O vazio é o espaço da liberdade, a ausência de certezas. Os homens querem voar, mas temem o vazio. Não podem viver sem certezas. Por isso trocam o vôo por gaiolas.

As gaiolas são o lugar onde as certezas moram. É um engano pensar que os homens seriam livres se pudessem, que eles não são livres porque um estranho os engaiolou, que se as portas das gaiolas estivessem abertas eles voariam.A verdade é o oposto.
Os homens preferem as gaiolas ao vôo. São eles mesmos que constroem as gaiolas onde passarão as suas vidas.”

Rubem alves



"Amigos não consultem os relógios quando um dia me for de vossas vidas... Porque o tempo é uma invenção da morte: não o conhece a vida - a verdadeira - em que basta um momento de poesia para nos dar a eternidade inteira".

Mario Quintana

O Homem e sua sombra




"Era um homem com sombra de cachorro/ que sonhava ter sombra de cavalo/ mas era um homem com sombra de cachorro/ e isto de algum modo o incomodava.// Por isto aprisionou-a num canil/ e altas horas da noite/ enquanto a sombra lhe ladrava/ sua alma em pelo galopava".

Affonso Romano de Sant'Anna

Sabia




"Não sabia que era precisamente esse fracasso que me levaria ao lugar que desejava. As correntes do rio profundo foram mais generosas que o meu remar contra elas. Não cheguei aonde planejei ir. Cheguei, sem querer, aonde meu coração queria chegar, sem que eu o soubesse."

Rubem Alves

no final da tarde...




No final da tarde, o poeta
Fecha as janelas, cerra
imaginadas cortinas,
encolhe suavemente as asas
e encara o mundo nas brancas quatro paredes. O tempo passeia finas unhas no final da tarde. O poeta mastiga o dia,
gosto neutro de sua boca que escorreu lerdo, morno, entre dedos inábeis e leves pancadas de chuva. No final da tarde, uma sombra se abaixa sobre as palavras. Sob as palavras, um abismo. E há ouro no céu de crepúsculo, há um besouro que agoniza na calçada, e ventos vindos do oeste.

Eunice Arruda

Tudo mudou...




Tudo mudou. Homens, coisas e animais mudaram de lã ou de pele. As palavras já não são as mesmas do tempo em que estudávamos gramática com os olhos míopes das professoras. Nádegas e pernas das mestras – objeto direto do nosso desejo – ofuscavam o interesse pela didática. Olho o mundo de todos os ângulos possíveis e tudo me parece oblíquo. É a civilização globalizada, a cultura de massa, a sagração do factóide, a fragmentação dos idiomas. Corta-se a palavra em frações microscópicas. A vida, o amor, a morte, a realidade: tudo agora virou fast food.

Francisco Carvalho

Cultura é identidade...



Cultura é identidade
É mais que isso
É tudo o que o homem imaginou para moldar o mundo
Para se acomodar nele e torná-lo digno de si próprio
É isso a cultura
Tudo o que o homem inventou para tornar a vida vivível e a morte afrontável

Aimé Césaire

E se nada acontecer ?




E se nada acontecer?
Se os rostos deformados e os sentidos mendigos, os olhos famintos e as mãos que interrogam, a carne que sangra e afoga os desejos;
se tudo isso se transformar em cinza e ausência e a dúvida acenar ainda?
E se o silêncio pesar sobre o grito de angústia, se a esfinge recolher seu sorriso transfigurado, se todos os sonhos forem abortados... e se nada acontecer? E se tudo isso não tiver a menor importância?

Antônio Pinto de Medeiros Filho

Mude




O mais importante é a mudança. Porque se você tem mais medo da mudança do que da desgraça, você não impede a desgraça. A mudança, o movimento, o dinamismo, a energia... só o que está morto não muda.

Edson Marques

Os três mal-amados




O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato
O amor comeu meus cartões de visita
O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas
O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minha dieta
O amor comeu todos os meu livros de poesia
O amor comeu meu Estado, minha cidade
O amor comeu minha paz, minha guerra, meu dia e minha noite
Meu inverno, meu verão
Comeu meu silencia, minha dor de cabeça
O meu medo da morte

João Cabral de Melo Neto

Como explicar que o homem...




COMO EXPLICAR QUE O HOMEM, UM ANIMAL TÃO PREDOMINANTEMENTE CONSTRUTIVO, SEJA TÃO APAIXONADAMENTE PROPENSO À DESTRUIÇÃO? TALVEZ PORQUE SEJA UMA CRIATURA VOLÚVEL, DE REPUTAÇÃO DUVIDOSA. OU TALVEZ PORQUE SEU ÚNICO PROPÓSITO NA VIDA SEJA PERSEGUIR UM OBJETIVO, ALGO QUE, AFINAL, AO SER ATINGIDO, NÃO MAIS É VIDA, MAS O PRINCÍPIO DA MORTE.


Fiódor Dostoiévski

domingo, 9 de janeiro de 2011

Aninha e suas pedras





Não te deixes destruir…
Ajuntando novas pedras e construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces.
Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha um poema.
E viverás no coração dos jovens e na memória das gerações que hão de vir.

Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas e não entraves seu uso aos que têm sede

Cora Coralina



“O inferno são os outros”

Jean Paul Sartre